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Justiça e perícia: confiança não é mercadoria A recente ação civil pública ajuizada pela OAB/RJ contra a plataforma digital "Resolve Juizado" (que comercializa petições automáticas por R$ 20) acende um alerta que transcende a advocacia e alcança todas as profissões técnicas regulamentadas: a mercantilização crescente das atividades profissionais.

A denúncia não é apenas contra um site. É contra um fenômeno que banaliza o exercício profissional, compromete a qualidade dos serviços prestados e coloca a sociedade em risco.

Essa é uma realidade que não poupa qualquer área: advocacia, perícia, contabilidade, engenharia, arquitetura, economia, medicina, psicologia, dentre tantas outras. Vivemos tempos em que:
  • Cursos prometem fórmulas mágicas de sucesso financeiro, sem compromisso com o rigor técnico e fornecimento de "modelos", sem a entrega de conhecimento e orientação de carreira;
  • Anúncios oferecem soluções simplistas e "rápidas" para problemas complexos, que exigem anos de estudo e constante atualização;
  • Profissionais não habilitados tentam ocupar espaços que deveriam ser exclusivos de quem possui qualificação legal e ética para atuar.
Confiança e respeitabilidade não são mercadorias de prateleira. São conquistas pessoais, frutos de anos de formação, atualização contínua, responsabilidade técnica e compromisso ético.

Você confiaria sua vida, seu patrimônio, sua liberdade ou a segurança da sua empresa nas mãos de aventureiros?
Na prática, muitos o fazem — e pagam um preço alto.

A regulamentação profissional existe para proteger a sociedade.

A regulamentação das profissões no Brasil começou a ganhar corpo principalmente entre as décadas de 30 e 60, criando conselhos profissionais com competência para:
  • Fiscalizar o exercício da profissão;
  • Estabelecer normas técnicas e de conduta ética;
  • Defender a sociedade contra práticas nocivas de falsos profissionais.
Desde então, profissões como engenharia, arquitetura e agrimensura (década de 30), contabilidade (década de 40), economia e medicina (década 50), administração e psicologia (década de 60, entre tantas outras, passaram a contar com Códigos de Ética próprios, construídos por quem compreende as especificidades da atividade técnica e os valores que a sustentam.

O exercício da profissão requer, primeiramente, a habilitação legal, obtida nos Conselhos Regionais, e se complementa com a observância permanente das normas técnicas e profissionais, dentre as quais se destaca o Código de Ética Profissional, que disciplina a conduta profissional perante os clientes, os colegas, a classe e suas entidades e a sociedade como um todo.

E não poderia ser diferente. Não é possível atribuir ou transferir a outras casas legislativas ou órgãos a competência legal para editar o próprio código de ética, pelo simples fato de que a compreensão dos princípios e valores que norteiam a conduta do profissional, quando no exercício da sua atividade e nos assuntos relacionados à profissão e à classe, é inerente aos profissionais da área e não a outras categorias ou a terceiros.

Prerrogativa profissional não é privilégio. É proteção social. Sem ela, o risco deixa de ser apenas individual — e passa a ameaçar a coletividade.

A perícia e o risco da banalização.

O mercado da perícia não está imune a esse fenômeno. Pelo contrário: é campo fértil para aventureiros que tentam transformar atividade técnica e científica em produto de fácil revenda.

Perícia não se improvisa. Não se aprende em fórmulas de final de semana. E muito menos se vende como um pacote pronto.

A atuação pericial — seja contábil, econômica, financeira, médica, de engenharia, psicológica ou de qualquer outra natureza — exige:
  • Habilitação legal (art. 5º, XIII, CF/88);
  • Nomeação judicial ou contratação idônea (art. 146 e art. 465, II, do CPC);
  • Rigor técnico na produção da prova (artigos 472, 473 e 477, do CPC).
Perícia sem qualificação adequada não é prova. É palpite. E palpite não serve à Justiça.

Ética profissional: um pacto permanente

Cada profissional técnico-científico, especialmente no campo da perícia, deve honrar diariamente um compromisso com:
  • A exatidão das certificações dos fatos;
  • A independência de pensamento científico e crítico;
  • Imparcialidade e o respeito ao contraditório e à ampla defesa;
  • O zelo absoluto para a qualidade e responsabilidade pelas consequências de seus laudos periciais ou pareceres técnicos.
Banalizar isso é violar o próprio princípio da Justiça.

A relação entre perito, assistente técnico, magistrado, partes e mercado não é mercantil. É uma construção de confiança, fundada sobre conhecimento técnico validado, experiência prática e conduta ética irrepreensível.

Não podemos normalizar a mercantilização

Por essa razão, quando da divulgação dos serviços por meio de anúncios ou propagandas, em qualquer modalidade ou veículo de comunicação, o profissional deve afirmar a essencialidade dos serviços contábeis e o compromisso com sua valorização. Deve, também, considerar e respeitar os limites estabelecidos nos seus Códigos de Éticas, o que implica reconhecer que é vedado publicar anúncios com característica mercantilista. Por que? Resulta em banalização e vulgarização dos serviços, além da desvalorização da classe e de prática desleal de concorrência.

A prática ilegal e a precarização profissional trazem graves consequências:
  • Concorrência desleal baseada na desqualificação.
  • Destruição da reputação das categorias;
  • Risco de decisões judiciais equivocadas;
  • Insegurança jurídica para cidadãos e empresas.
Por isso, é urgente que entidades de classe, conselhos e a sociedade estejam atentos e atuem de forma firme para coibir essas práticas — assim como fez a OAB/RJ neste caso recente.

O que cada um de nós pode fazer?

✔ Exigir qualificação adequada;
✔ Valorizar profissionais realmente preparados;
✔ Não compactuar com soluções improvisadas e mercantis;
✔ Denunciar práticas ilegais e antiéticas;
✔ Construir uma cultura profissional de respeito, técnica e seriedade.

No mundo real, a perícia lida com fatos, pessoas e direitos.

Cada laudo pode impactar vidas, patrimônios, empresas e reputações. Por isso, ética, conhecimento e responsabilidade não admitem atalhos.

A confiança profissional é construída sobre quatro pilares inegociáveis:
  • Competência.
  • Integridade.
  • Rigor técnico e
  • Responsabilidade social.
Vamos juntos fortalecer o ecossistema da perícia e das profissões regulamentadas.

O legado que queremos construir depende de nossas escolhas diárias: Um mercado ético — ou um mercado de ilusões e frustrações?

Artigo escrito por Sandra Batista,
perita contábil e professora.

Especialista em Direito Tributário, em Gestão de Entidades de Interesse e em Recuperação Judicial e Falências. Sócia da Primazia Academia de Perícia. Diretora de Desenvolvimento Científico da Fundação Brasileira de Contabilidade. Presidente do Conselho Consultivo da Federação Brasileira dos Peritos, Árbitros e Mediadores. Integra o Grupo de Normas de Perícia e Comissão do EǪT Perícia do Conselho Federal de Contabilidade. Acadêmica da Academia de Ciências Contábeis do Distrito Federal. Sua atuação é marcada pela proteção de ações afirmativas da liderança feminina e de um ecossistema pericial sadio e sustentável.


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