A regularidade tributária na recuperação judicial
Resumo
A partir da vigência da Lei n° 14.112/2020, o art. 57 da Lei n° 11.101/2005
passou a ter o cumprimento exigido pelos Tribunais brasileiros,
mostrando-se necessária para a concessão da recuperação judicial a
regularização tributária diante dos novos mecanismos específicos criados
para o devedor promover o saneamento fiscal. A nova realidade permitiu o
surgimento de novos entendimentos para a equalização dos interesses em jogo,
identificando-se a concessão da recuperação judicial e a posterior
apresentação das certidões, em prazos tendencialmente maiores.
Consequências decorrentes da ausência do cumprimento do art. 57 surgiram de
formas variadas, causando insegurança jurídica e a necessidade de
tratamento pela jurisprudência.
Palavras-chave: recuperação judicial, saneamento fiscal,
crédito tributário, plano de recuperação judicial, certidão negativa de
débito tributário, insolvência empresarial.
1.
O art. 57 da Lei n° 11.101/2005 e a recuperação judicial: encontros e
desencontros
Considerando a crise que motivou a recuperação judicial e as obrigações
pendentes perante os trabalhadores, bancos e fornecedores, dificilmente o
devedor estará em dia com as obrigações tributárias ao tempo da
distribuição do pedido recuperacional, sendo comum a existência de
recuperações judiciais com significativo passivo tributário.
Ao longo da vigência da Lei n° 11.101/2005, a exigência do cumprimento do
art. 57 foi flexibilizada em razão de diversos fundamentos e, embora as
Execuções Fiscais não eram suspensas pelo deferimento do processamento da
recuperação judicial, o fato é que antes da Lei n° 14.112/2020 o saneamento
tributário não gerava grandes preocupações ao devedor em recuperação
judicial.
A exclusão dos créditos tributários da recuperação judicial, assim como das
hipóteses previstas no art. 49, §§3° e 4°, da Lei n° 11.101/2005,
compromete as chances do instituto recuperacional apresentar melhores
resultados no país, gerando insegurança jurídica diante dos resultados da
luta dos aplicadores do Direito pela manutenção do equilíbrio legal abalado
pelas exceções previstas. A reforma de 2020 poderia ter contribuído para a
melhor equalização da questão, mas, a disrupção legislativa desejada por
muitos não se verificou.
Pela sistemática legal, os créditos tributários não se encontram submetidos
à recuperação judicial e o deferimento do processamento da recuperação
judicial não gera a suspensão das Execuções Fiscais, lembrando que o art.
6°, §7°-B, da Lei n° 11.101/2005, passou com a reforma da lei em 2020 a
prever a competência do juízo da recuperação judicial para determinar “a
substituição dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital
essenciais à manutenção da empresarial até o encerramento da recuperação
judicial, a qual será implementada mediante a cooperação jurisdicional”.
A exigência da regularidade tributária como requisito legal para o devedor
ter acesso aos benefícios que permitirão os meios para a superação da crise
não corresponde a uma novidade trazida pela Lei n° 11.101/2005. O Dec. Lei
n° 7.661/1945 já exigia do devedor, em seu art. 174, a comprovação do
pagamento dos impostos para o cumprimento da concordata, que raramente se
mostrava exitosa no país.
Desde a distribuição do pedido recuperacional, a Lei n° 11.101/2005
assegura ao Fisco a manutenção da cobrança judicial dos créditos
tributários excluídos da abrangência da recuperação judicial, ao passo que
o art. 57, após a aprovação do plano, exige para a concessão da recuperação
judicial a apresentação das certidões negativas dos débitos tributários.
Não obstante, a proteção dos bens do devedor pelo juízo recuperacional e a
flexibilização na exigência das certidões, transferiam a a questão
tributária para ser solucionada somente após o encerramento da recuperação
judicial.
O art. 57 da Lei n° 11.101/2005 dispõe:
“Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembleia geral de
credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção
de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos
tributários nos termos dos arts. 151, 205, 206 da Lei 5.172, de 25 de
outubro de 1966 – Código Tributário Nacional.”
Nos termos da lei, após obter a aprovação do plano na Assembleia Geral de
Credores ou, no caso de aprovação tácita do plano em razão da ausência da
objeção pelos credores, cabe ao devedor que teve o plano aprovado
demonstrar sua regularidade fiscal mediante a apresentação das certidões
negativas de débitos tributários.
O art. 57 sempre despertou críticas e, ao longo da vigência da Lei n°
11.101/2005, a inexistência de leis tributárias específicas para o devedor
em recuperação judicial aderir ao parcelamento motivou a dispensa da sua
exigência para a concessão da recuperação judicial no país (
v.g.STJ
REsp 1.187.404 MT), tendo a jurisprudência pátria atenuado o rigor da lei
com a finalidade de assegurar sua aplicação em consonância com o disposto
em seu art. 47, diante da antinomia legal identificada.
Mesmo após o surgimento da Lei n° 13.043/2014, que buscou a criação de uma
legislação específica para o parcelamento de tributos aos devedores em
recuperação judicial para atender o disposto no art. 68 da Lei n°
11.101/2005, o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo continuaram a dispensar o cumprimento da exigência
prevista no art. 57 para a homologação do plano e respectiva concessão da
recuperação judicial (
v.g.STJ REsp n° 1.864.625/SP; STJ AgInt no
REsp 1.619.054/RS; TJSP AgI n° 2144665-51.2018.8.26.0000; TJSP AgI n°
2196316-93.2016.8.26.000). Além disso, considerando que o art. 57 não prevê
qualquer consequência para a ausência da apresentação das certidões
previstas, a exigência legal poderia ser afastada sem maiores
desdobramentos.
A reforma trazida pela Lei n° 14.112/2020 não alterou o art. 57 da Lei n°
11.101/2005, mas, promoveu alterações na Lei n° 10.522/2002 (Lei Geral do
Parcelamento) e na Lei n° 13.988/2020 (Lei do Contribuinte Legal),
destacando-se a previsão da transação tributária específica para devedores
em recuperação judicial para a cobrança de créditos da Fazenda Pública
Federal. Além disso, a Lei n° 14.112/2020 acrescentou o inciso V no art. 73
da Lei n° 11.101/2005 para prever como nova hipótese de convolação da
recuperação judicial em falência o descumprimento pelo devedor dos
parcelamentos previstos no art. 68 da referida lei ou da transação prevista
no art. 10-C da Lei n° 10.522/2002, bem como o inciso VI para a mesma
finalidade em caso de esvaziamento patrimonial em prejuízo às Fazendas
Pública.
Os reflexos da Lei n° 14.112/2020 na legislação tributária repercutiram na
aplicação do art. 57 da Lei n° 11.101/2005, identificando-se no Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo, a partir da vigência da Lei n° 14.112/2020,
a exigência da apresentação das certidões negativas de débitos tributários
para a concessão da recuperação judicial em razão da existência de
instrumentos criados especificamente para permitir aos devedores em
recuperação judicial o saneamento tributário em condições mais ampliadas e
viáveis (
v.g.TJSP AgI n° 2248841-13.2020.8.26.0000; TJSP AgI n°
2194653-36.2021.8.26.0000; TJSP. AgI n° 2229302-27.2021.8.26.0000; TJSP AgI
n° 2210390-79.2021.8.26.0000).
Considerando as novas alternativas existentes para o saneamento tributário,
o novo entendimento adotado pelo E. Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo também se verifica nos Tribunais de outros estados, passando a Lei n°
14.112/2020 a constituir um marco para a exigência do cumprimento do art.
57 da Lei n° 11.101/2005 no país, destacando-se, nesse sentido, os
Enunciados XIX e XX do Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial
do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
“Enunciado XIX: Após a vigência da Lei n. 14.112/2005, constitui
requisito para a homologação do plano de recuperação judicial, ou de
eventual aditivo, a prévia apresentação das certidões negativas de
débitos tributários, facultada a concessão de prazo para cumprimento da
exigência.”
“Enunciado XX: A exigência de apresentação das certidões negativas de
débitos tributários é passível de exame de ofício, independentemente da
parte recorrente.”
No Superior Tribunal de Justiça consolidou-se o entendimento que a ausência
de lei específica para o parcelamento de débitos dos devedores em
recuperação judicial dispensava a apresentação das certidões negativas de
débitos tributários. Não obstante, no final do ano de 2023, destaca-se no
Superior Tribunal de Justiça a adoção de entendimento favorável à exigência
das certidões negativas de débitos tributários para a concessão de
recuperação judicial após a vigência da Lei n° 14.112/2020, em razão das
novas alternativas existentes para o saneamento tributário.
Portanto, a flexibilização na exigência do cumprimento do art. 57 da Lei n°
11.101/2005 que prevalecia antes da reforma em 2020, foi afastada pelo
Superior Tribunal de Justiça no final do ano de 2023, que passou a
considerar como marco para o cumprimento do art. 57 a vigência da Lei n°
14.112/2020 em razão das novas alternativas criadas para o saneamento
tributário pelos devedores em recuperação judicial, conforme Acórdão
proferido pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso
Especial nº 2.053.240/SP, julgado em 17 de outubro de 2023, de relatoria do
eminente Ministro MARCO AURELIO BELLIZZE, do qual destaca-se o seguinte
trecho:
“A exigência de regularidade fiscal, como condição à concessão da
recuperação judicial, após a edição da Lei 14.112/2020, passou a atender
detidamente aos princípios da função social e da preservação da empresa,
segundo o novel sistema concebido pelo legislador no tratamento do crédito
fiscal no processo de recuperação judicial. Reconhecida, nesses termos, a
plena aplicabilidade do art. 57 da LRF, que exige, como condição à
concessão da recuperação judicial, a demonstração da regularidade fiscal,
alguns pontos a respeito da questão posta merecem esclarecimentos.
De acordo com os fundamentos acima delineados, o direito ao parcelamento
consubstancia um direito subjetivo do devedor em recuperação judicial (o
qual não pode ser recusado no caso de cumprimento das condições impostas,
ressalta-se), que somente pôde ser implementado, no âmbito federal, em
razão da edição de lei específica a esse propósito (a Lei n. 14.112/2020,
que introduziu os arts. 10-A, 10-B e 10 C na Lei 10.522/2002).
Por conseguinte, em relação a débitos fiscais de titularidade da Fazenda
Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a exigência de
regularidade fiscal, como condição à concessão da recuperação judicial,
somente poderá ser implementada a partir da edição de lei específica dos
referidos entes políticos (ainda que restrita em aderir aos termos da lei
federal).
Relevante anotar, ainda, não se afigurar possível ao Juízo da recuperação,
diante da não comprovação da regularidade fiscal estabelecer consequências
diversas daquela fixada em lei. Conforme assinalado, nos termos dos arts.
57 e 58 da LRF, a não apresentação de certidões negativas (ou positivas,
com efeito de negativas), enseja a não concessão da recuperação judicial.”
Referido julgado repercutiu de forma contundente no âmbito das recuperações
judiciais e o entendimento inaugurado pelos Tribunais Estaduais quanto ao
cumprimento do art. 57, a partir da vigência da Lei n° 14.112/2020, passou
a prevalecer como requisito necessário à concessão da recuperação judicial
no país.
2.
Os desdobramentos da exigência do art. 57 da Lei n° 11.101/2005
Após ter o cumprimento flexibilizado durante a maior parte da vigência da
Lei n° 11.101/2005, o novo entendimento referente ao art. 57, a partir da
reforma de 2020, introduziu um novo e importante elemento na recuperação
judicial: a regularidade tributária.
Os notórios obstáculos para o devedor em recuperação judicial atender ao
disposto no art. 57, sem adentrar no mérito dos instrumentos
especificamente criados para o referido fim, podem inviabilizar o êxito de
muitas recuperações judiciais em razão, principalmente, das dificuldades
decorrentes dos ajustes do fluxo de caixa ao prazo previsto para o
saneamento fiscal.
Nesse sentido, identifica-se na jurisprudência a exigência do cumprimento
do art. 57 associada à concessão de um prazo maior para a apresentação das
certidões. É possível identificar na jurisprudência do Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo a concessão do prazo para a regularização fiscal
antes do deferimento da recuperação judicial (
v.g.TJSP. AgI n°
2036007-54.2023.8.26.0000) e, até mesmo casos, onde se verifica a
homologação do plano e a respectiva concessão de prazo para o cumprimento
do art. 57 após o deferimento da recuperação judicial (
v.g.TJSP.
AgI n° 2229302-27.2021.8.26.0000).
Os prazos concedidos para o devedor cumprir o art. 57 não são uniformes,
variando entre 60 a 180 dias, com clara tendência de aumento do tempo para
a regularização fiscal desde o início da adoção do novo entendimento a
partir da reforma (
v.g.TJSP. AgI n° 2224317-78.2022.8.26.0000;
TJSP. AgI n° 2039112-05.2024.8.26.0000; TJSP. AgI n°
2137544-59.2024.8.26.0000).
A concessão de prazo para o cumprimento do art. 57, conforme visto, é
objeto do Enunciado XIX do Grupo de Câmaras Reservadas de Direito
Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e tem-se tornado
frequente nas decisões proferidas nas recuperações judiciais distribuídas
após a reforma de 2020.
O julgado proferido pela 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no AgI n°
2137544-59.2024.8.26.0000, demonstra o atual entendimento adotado quanto à
exigência do art. 57,
in verbis:
“Agravo de instrumento – Recuperação judicial – Decisão recorrida que
homologou o plano de recuperação judicial e concedeu a recuperação judicial
de Eldtec Brasil Ltda. e outras, determinando que (i) a “recuperanda
comprove ou, no mínimo, que demonstre os esforços nesse sentido, com a
juntada de sua adesão aos programas de parcelamento”, no prazo de 90 dias e
que “a supervisão judicial de cumprimento do plano deva durar pelo prazo de
15 meses” – Inconformismo das recuperandas – Impossibilidade de fixar-se o
prazo de supervisão judicial em período inferior ao prazo previsto no plano
de recuperação judicial em conformidade com o teto legal de dois anos (Lei
nº 11.101/2005, art. 61) – Exigência de regularização fiscal contida nos
artigos 57 da Lei nº 11.101/2005 e 191-A do Código Tributário Nacional –
Aplicabilidade, ante os avanços no tratamento legal dispensado à
regularização fiscal de sociedades em recuperação judicial, nos termos das
Leis nºs 14.112/2020 e 13.988/2020 – Decisão homologatória mantida, porém,
com a determinação para que as recuperandas comprovem, na origem, a
quitação ou o parcelamento de todo o seu passivo tributário, ou eventual
impossibilidade decorrente de injustificada ou abusiva relutância do fisco,
com ampliação do prazo para 180 dias contados da publicação deste julgado,
sob pena de “sobrestar o processo recuperacional até a efetivação da
medida, sem prejuízo da retomada das execuções individuais e de eventuais
pedidos de falência”, nos termos do recente precedente da 3ª Turma do
Superior Tribunal de Justiça (REsp 2.053.240/SP - julgado em 17.10.2023) –
Recurso parcialmente provido, com determinação.” (TJSP. AgI n°
2137544-59.2024.8.26.0000. 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. Rel.
Des. MAURICIO PESSOA. DJ 24/09/2024)
Do V. Acórdão proferido no referido AgI n° 2137544-59.2024.8.26.0000, de
Relatoria do I. Desembargador MAURICIO PESSOA, destaca-se o seguinte trecho
referente à concessão da recuperação judicial e o prazo indicado para a
regularização fiscal:
“Nesse contexto, tem-se, de um lado, que não há mais como afastar-se
integralmente a exigência de regularização fiscal das sociedades em
recuperação judicial, na esteira da antiga jurisprudência sobre o tema. De
outro, contudo, não parece razoável obstar-se ou revogar-se, no atual
estágio, a homologação do plano de recuperação judicial e a produção dos
seus efeitos.
Assim, para que não se ignore o atual cenário legal nem haja prejuízo ao
trabalho desenvolvido por todas as partes interessadas desde o ajuizamento
da recuperação judicial, dá-se parcial provimento ao recurso tão somente
para ampliar-se para 180 dias contados da decisão recorrida o prazo
para que as agravantes comprovem, na origem, a quitação ou parcelamento do
seu passivo fiscal
(na esfera federal e na esfera estadual, nesta circunscrita aos débitos
oriundos de ICMS inscritos em dívida ativa),
ou eventual impossibilidade decorrente de injustificada ou abusiva relutância
do fisco, sob pena de “
sobrestar o processo recuperacional até a
efetivação da medida, sem prejuízo da retomada das execuções individuais e
de eventuais pedidos de falência”
, nos termos do citado precedente do
C. Superior Tribunal de Justiça.
Reforma-se parcialmente a r. decisão recorrida para fixar-se o prazo de
fiscalização judicial em 2 (dois) anos, a contar da data da homologação do
plano de recuperação judicial e para determinar-se que as recuperandas
comprovem, na origem, a quitação ou o parcelamento de todo o seu passivo
tributário, ou eventual impossibilidade decorrente de injustificada ou
abusiva relutância do fisco, no prazo 180 dias contados da decisão
recorrida, sob pena de “sobrestar o processo recuperacional até a
efetivação da medida, sem prejuízo da retomada das execuções individuais e
de eventuais pedidos de falência”, o que deverá ser verificado e observado
pelo D. Juízo de origem.”
(destaques constam no original)
Em consonância com o fundamento que deu vida ao art. 57 da Lei n°
11.101/2005, os Tribunais exigem a apresentação das certidões somente no
âmbito federal em razão da ampliação dos meios criados para a regularidade
tributária pela Lei n° 14.112/202, sendo que o cumprimento do art. 57
perante as Fazendas Estaduais, Municipais e Distrito Federal, dependerá da
existência de instrumentos legais específicos de parcelamento para os
devedores em recuperação judicial.
A concessão de prazo razoável para o devedor cumprir o art. 57, bem como a
exigência de leis específicas para permitir ao devedor em recuperação
judicial o saneamento fiscal perante as Fazendas Estaduais, Municipais e
Distrito Federal, parece ser um caminho adequado criado pela jurisprudência
para atenuar o problema do desencaixe do fluxo de caixa do devedor aos
prazos previstos para a regularização tributária, que deve ser analisado de
forma criteriosa pelo devedor em razão da nova hipótese de convolação da
recuperação judicial em falência introduzida em 2020 no art. 73, V, da Lei
n° 11.101/2005.
3.
Efeitos do descumprimento do art. 57: suspensão, revogação ou falência?
O art. 57 da Lei n° 11.101/2005 dispõe que após a aprovação do plano cabe
ao devedor apresentar as certidões negativas de débitos tributários, ao
passo que o art. 58 da referida lei prevê que cumpridas as exigências
legais, o juiz concederá a recuperação judicial ao devedor que teve o plano
aprovado.
Nos termos legais, o atendimento ao disposto no art. 57 constitui requisito
para a concessão da recuperação judicial, mas, não se verifica na Lei n°
11.101/2005 qualquer sanção específica para o descumprimento do art. 57.
Portanto, não havendo a apresentação das certidões previstas no prazo legal
não haverá a concessão da recuperação judicial, extinguindo-se, assim, o
processo.
Não se vislumbra nesse caso, diante da ausência de previsão legal
específica, a possibilidade da convolação da recuperação judicial em
falência, já que não se encontra elencada nos arts. 73, 94 ou em qualquer
outro dispositivo da Lei n° 11.101/2005 referida hipótese como causa de
falência. Considerando que o sistema legal brasileiro adota o regime da
insolvência jurídica, diante da ausência de dispositivo legal expresso, o
descumprimento do art. 57 não pode resultar na convolação da recuperação
judicial em falência.
Embora exigido como condição previa à concessão da recuperação judicial, a
construção jurisprudencial, conforme visto, criou a possibilidade do
cumprimento do art. 57 verificar-se após a concessão da recuperação
judicial, no prazo deferido pelo julgador. Nessa hipótese, questiona-se
qual seria a consequência da ausência da apresentação das certidões
exigidas diante da novação prevista no art. 59 da Lei n° 11.101/2005.
Com base em julgados conhecidos sobre o tema, é possível destacar três
desdobramentos distintos:
i)convolação da recuperação judicial em
falência;
ii)suspensão do processo, com a retomada das ações
contra o devedor;
iii)revogação da decisão de concessão da
recuperação judicial e respectiva extinção do processo.
Conforme visto, diante da ausência de previsão legal específica e da adoção
do regime da insolvência jurídica pelo sistema legal, a possibilidade da
convolação da recuperação judicial em falência não encontra respaldo no
ordenamento jurídico, de forma que o descumprimento do art. 57 não pode
resultar na convolação da recuperação judicial em falência.
Não obstante, é possível a identificação de entendimento pela convolação da
recuperação judicial em falência no caso de desatendimento ao disposto no
art. 57 no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (
v.g.TJSP
AgI n° 2180736-47.2021.8.26.0000), prevalecendo, contudo, o entendimento
pela impossibilidade da falência nessa hipótese em razão da ausência de
previsão legal específica (
v.g.AgI n° 2137544-59.2024.8.26.0000;
AgI n° 2039112-05.2024.8.26.0000).
Não atendido o disposto no art. 57 após o prazo concedido, destaca-se no
âmbito do Superior Tribunal de Justiça o sobrestamento do processo
recuperacional até a efetivação da medida, sem prejuízo da retomada das
execuções individuais e de eventuais pedidos de falência, destacando-se que
a Corte superior também afasta a possibilidade da convolação da recuperação
judicial em falência pelo descumprimento do art. 57 (REsp n° 2.053.240/SP;
REsp n° 2.082.781/SP).
Por outro lado, o sobrestamento do feito recuperacional, com a retomada das
ações contra o devedor, conduz o processo de recuperação judicial a uma
“zona cinzenta”, propiciando uma série de incertezas e conflitos, com a
possibilidade da perpetuação processual em razão da ausência da
apresentação das certidões pelo devedor.
Nesse contexto, existe um terceiro desdobramento possível para a ausência
da apresentação das certidões, que se destaca pela busca da equalização dos
interesses envolvidos, conforme decisão proferida pelo D. Magistrado do
Foro Especializado das 2ª, 5ª e 8ª RAJS - Vara Regional Competência
Empresarial, Dr. PAULO ROBERTO ZAIDAN MALUF,
in verbis:
“Deste modo, a exigência da regularidade fiscal como condição à
concessão da recuperação garante o equilíbrio
pretendido pelo legislador entre os relevantes fins do processo
recuperacional função social e princípio da preservação da empresa e
restabelecimento da saúde econômico-financeira da sociedade empresária em
recuperação judicial, atendendo aos parâmetros da razoabilidade e
proporcionalidade ao conceder o benefício legal somente às empresas que
demonstrem capacidade de cumprimentos das obrigações tributárias inerentes
à atividade.
Importante salientar que a transação tributária deve ocorrer
no
tempo da recuperação judicial e não no tempo da Fazenda
, com
suas burocracias e notório excesso de serviço - o que, na maior parte dos
casos, impede a formatação e apresentação de transação tributária ao tempo
da aprovação do plano de recuperação judicial pela assembleia geral de
credores.
Portanto, a solução mais adequada aos interesses econômicos e sociais deste
processo é conceder prazo razoável às Recuperandas para que procedam à
transação fiscal junto aos Fiscos Federal, Estadual e Municipal (desde que
possuam leis que permitam a transação tributária de modo factível), sem
comprometer o plano discutido e aprovado,
com o início imediato de pagamento dos créditos concursais -
sobretudo os de natureza trabalhista na forma do plano aprovado pelos
credores.
Realmente, a simples
(i) suspensão do processo de recuperação judicial e do período de
blindagem (stay period),
até a apresentação das respectivas CNDs, permitirá o prosseguimento das
ações e execuções individuais, afastando-se por completo do princípio da
par conditio creditorum. Também poderá
inviabilizar o oportuno cumprimento do plano de recuperação judicial,
anteriormente aprovado.
A
(ii) extinção imediata do processo em razão da
ausência de CNDs a possibilitar a concessão da recuperação judicial
constitui um enorme desperdício de recursos dos interessados (empresa em
recuperação judicial e credores) e do Poder Judiciário.
A
(iii) convolação em falência não possui previsão
expressa nos artigos 57 e 73 da LRF (nesse sentido, AI nº
2039112-05.2024.8.26.0000 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial Rel
Des Maurício Pessoa 02/05/2024).
Frise-se: ao se conceder prazo razoável para apresentação de CNDs, a
empresa continuará em atividade. O plano de recuperação judicial foi
devidamente aprovado pelos credores, que reconheceram a viabilidade
econômica da empresa e escolheram a melhor solução para o recebimento de
seus créditos, preservando o valor agregado dos ativos.
Ademais, com a aprovação do plano, a oportuna homologação pelo Juízo da
Recuperação e a
concessão da recuperação judicial,
os créditos deverão ser pagos
imediatamente, nos
exatos termos e condições aprovados, beneficiando diretamente os
empregados, assim como os contratantes e impactando positivamente toda a
estrutura empresarial, repercutindo na formação de novos contratos, atraindo
investimentos e atingindo, em última análise, a função social da empresa,
com preservação da atividade empresarial, manutenção/geração de emprego e
renda.
Portanto, a fim de possibilitar o prosseguimento deste processo de
recuperação judicial,
defiro o prazo de 01 ano contado da publicação desta decisão no DJE
para a juntada de certidões negativas de débitos fiscais (ou certidões
positivas com efeitos negativos).
Importante repetir e frisar que este prazo permitirá que os
débitos trabalhistas possam começar a ser adimplidos nos termos
propostos pelo plano.
A homologação do plano de recuperação judicial terá como
condição
resolutiva
a apresentação das CNDs. A condição resolutiva
terá como efeito extinguir os efeitos da decisão homologatória, afastando a
concessão da recuperação e afastando as obrigações contidas no plano
anteriormente aprovado.
Deste modo,
ficam as Recuperandas intimadas para apresentar certidões de
regularidade fiscal (certidão negativa de débitos fiscais ou certidão
positiva com efeitos negativos), no prazo de 01 ano - contado da
publicação desta decisão no DJE
-,ou demonstrar, de forma inequívoca, eventual impossibilidade decorrente de
injustificada ou abusiva relutância do Fisco,
sob pena de revogação da homologação do plano de recuperação e
revogação da concessão da Recuperação Judicial
- repita-se, afastando a concessão da recuperação judicial e afastando as
obrigações contidas no plano anteriormente aprovado, com o consequente
prosseguimento das ações e execuções (créditos concursais) pelo
valor originário das obrigações.”
(grifos constam no original)
(Proc. n° 1009827-02.2024.8.26.0576)
Dentre os desdobramentos apresentados, referido entendimento destaca-se por
buscar a harmonização dos interesses abrangidos pela recuperação judicial,
na medida em que prestigia o resultado da votação do plano pelos credores,
dando início à contagem dos prazos de pagamento previstos no plano em
benefício dos credores – especialmente os trabalhistas, além de fornecer
fôlego novo ao devedor para o desenvolvimento da atividade econômica ao
mesmo tempo em que permite um tempo mais adequado para o devedor tentar
ajustar o seu fluxo de caixa aos valores das obrigações tributárias.
4. Conclusão
A partir da vigência da Lei n° 14.112/2020, o art. 57 da Lei n° 11.101/2005
passou a ter o cumprimento exigido pelos Tribunais, de forma que a criação
dos novos instrumentos para a regularização tributária afastou a
possibilidade da concessão da recuperação judicial sem a apresentação das
certidões tributárias Federal e das demais Fazendas Públicas, desde que
dotadas de leis específicas para permitir o adequado saneamento fiscal para
os devedores em recuperação judicial.
Apesar de presente na lei desde a sua vigência, somente a partir da reforma
de 2020 o art. 57 passou a ser realmente exigido pelos Tribunais, com
importantes desdobramentos na jurisprudência que podem gerar insegurança
jurídica aos devedores diante do risco de falência decorrente da ausência
da apresentação das certidões.
A complexidade do tema e a inevitável exigência do cumprimento do art. 57 a
partir da reforma de 2020, exigiram a criação de soluções destinadas a
equilibrar os interesses em jogo. Nessa nova realidade, prazos são
concedidos e ampliados para a regularização tributária, por vezes exigida
antes da concessão da recuperação judicial e muitas vezes depois, com
diferentes consequências processuais em caso da ausência da apresentação
das certidões pelo devedor.
Dentre as consequências possíveis, conclui-se que a convolação da
recuperação judicial em falência relacionada a crédito tributário deve
ocorrer somente nas hipóteses legais previstas no art. 73, V, da Lei n°
11.101/2005 – descumprimento de parcelamento ou transação e no caso do
inciso VI do referido dispositivo legal, visto que havendo o esvaziamento
patrimonial da devedora que implique na liquidação substancial da empresa
em prejuízo das Fazendas Públicas e dos credores não sujeitos à recuperação
judicial, o Juiz poderá decretar a falência durante o processo de
recuperação judicial.
A solução constante no
leading casedo Superior Tribunal de Justiça
(REsp n° 2.053.240/SP), determinando o sobrestamento do feito
recuperacional, com a retomada das ações contra o devedor, cria
inevitavelmente um “vácuo” no processo de recuperação judicial com grande
potencial para o surgimento de inúmeros problemas relacionados aos efeitos
da novação, restrições legais e obrigações do devedor em recuperação
judicial, atuação do Administrador Judicial, ofensa ao princípio do
par conditio creditorum,
cumprimento do Plano e convolação da recuperação judicial em falência que
certamente proporcionarão amplas discussões judiciais.
Nesse contexto, parece que diante da ausência da apresentação das certidões
no prazo determinado, a terceira solução apresentada mostra-se mais
equilibrada. Ao mesmo tempo que a concessão da recuperação judicial permite
o início da contagem dos prazos previstos no plano em benefício dos
credores, o prazo de um ano para a regularização tributária prestigia o
pagamento dos credores trabalhistas e permite ao devedor equalizar de forma
mais adequada o seu fluxo de caixa ao cumprimento das obrigações
tributárias anteriores à recuperação judicial.
Não havendo o saneamento tributário no prazo concedido, diante da
homologação do plano sob a condição resolutiva quanto à apresentação das
certidões, os efeitos da decisão homologatória e respectiva concessão da
recuperação judicial serão extintos, retornando as obrigações às condições
originalmente contratadas, descontados os pagamentos eventualmente
realizados durante o processo, com o consequente prosseguimento das ações e
execuções referentes aos créditos concursais que se encontravam suspensas.
Adotado referido entendimento, o processo de recuperação judicial se
extingue, encerrando-se todas as questões que poderiam surgir em um processo
recuperacional suspenso por tempo indeterminado e com vários pontos
suscetíveis a discussões judiciais.
Bibliografia
BRASIL. Lei n° 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação
judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade
empresária. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 9 de fevereiro de 2005.
Disponível em
<
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm
> Acesso em: 01 dezembro 2024.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em
<
https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Inicio>
Acesso em: 01 dezembro 2024.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Disponível em
<
https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/consultaCompleta.do?f=1>
Acesso em: 01 dezembro 2024.
Artigo escrito por Marcelo Gazzi Taddei, que é advogado, parecerista e
administrador judicial em processos de Recuperação Judicial e Falência
no Estado de São Paulo. Professor de Direito Empresarial na UNIP – São
José do Rio Preto, SP, desde 2001. Graduado e mestre em Direito pela
Universidade Estadual Paulista – UNESP, de Franca/SP. Professor
convidado em cursos de pós-graduação.
Fonte
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