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A regularidade tributária na recuperação judicial Resumo

A partir da vigência da Lei n° 14.112/2020, o art. 57 da Lei n° 11.101/2005 passou a ter o cumprimento exigido pelos Tribunais brasileiros, mostrando-se necessária para a concessão da recuperação judicial a regularização tributária diante dos novos mecanismos específicos criados para o devedor promover o saneamento fiscal. A nova realidade permitiu o surgimento de novos entendimentos para a equalização dos interesses em jogo, identificando-se a concessão da recuperação judicial e a posterior apresentação das certidões, em prazos tendencialmente maiores. Consequências decorrentes da ausência do cumprimento do art. 57 surgiram de formas variadas, causando insegurança jurídica e a necessidade de tratamento pela jurisprudência.

Palavras-chave: recuperação judicial, saneamento fiscal, crédito tributário, plano de recuperação judicial, certidão negativa de débito tributário, insolvência empresarial.

1. O art. 57 da Lei n° 11.101/2005 e a recuperação judicial: encontros e desencontros

Considerando a crise que motivou a recuperação judicial e as obrigações pendentes perante os trabalhadores, bancos e fornecedores, dificilmente o devedor estará em dia com as obrigações tributárias ao tempo da distribuição do pedido recuperacional, sendo comum a existência de recuperações judiciais com significativo passivo tributário.

Ao longo da vigência da Lei n° 11.101/2005, a exigência do cumprimento do art. 57 foi flexibilizada em razão de diversos fundamentos e, embora as Execuções Fiscais não eram suspensas pelo deferimento do processamento da recuperação judicial, o fato é que antes da Lei n° 14.112/2020 o saneamento tributário não gerava grandes preocupações ao devedor em recuperação judicial.

A exclusão dos créditos tributários da recuperação judicial, assim como das hipóteses previstas no art. 49, §§3° e 4°, da Lei n° 11.101/2005, compromete as chances do instituto recuperacional apresentar melhores resultados no país, gerando insegurança jurídica diante dos resultados da luta dos aplicadores do Direito pela manutenção do equilíbrio legal abalado pelas exceções previstas. A reforma de 2020 poderia ter contribuído para a melhor equalização da questão, mas, a disrupção legislativa desejada por muitos não se verificou.

Pela sistemática legal, os créditos tributários não se encontram submetidos à recuperação judicial e o deferimento do processamento da recuperação judicial não gera a suspensão das Execuções Fiscais, lembrando que o art. 6°, §7°-B, da Lei n° 11.101/2005, passou com a reforma da lei em 2020 a prever a competência do juízo da recuperação judicial para determinar “a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da empresarial até o encerramento da recuperação judicial, a qual será implementada mediante a cooperação jurisdicional”.

A exigência da regularidade tributária como requisito legal para o devedor ter acesso aos benefícios que permitirão os meios para a superação da crise não corresponde a uma novidade trazida pela Lei n° 11.101/2005. O Dec. Lei n° 7.661/1945 já exigia do devedor, em seu art. 174, a comprovação do pagamento dos impostos para o cumprimento da concordata, que raramente se mostrava exitosa no país.

Desde a distribuição do pedido recuperacional, a Lei n° 11.101/2005 assegura ao Fisco a manutenção da cobrança judicial dos créditos tributários excluídos da abrangência da recuperação judicial, ao passo que o art. 57, após a aprovação do plano, exige para a concessão da recuperação judicial a apresentação das certidões negativas dos débitos tributários. Não obstante, a proteção dos bens do devedor pelo juízo recuperacional e a flexibilização na exigência das certidões, transferiam a a questão tributária para ser solucionada somente após o encerramento da recuperação judicial.

O art. 57 da Lei n° 11.101/2005 dispõe:

“Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembleia geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151, 205, 206 da Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional.”

Nos termos da lei, após obter a aprovação do plano na Assembleia Geral de Credores ou, no caso de aprovação tácita do plano em razão da ausência da objeção pelos credores, cabe ao devedor que teve o plano aprovado demonstrar sua regularidade fiscal mediante a apresentação das certidões negativas de débitos tributários.

O art. 57 sempre despertou críticas e, ao longo da vigência da Lei n° 11.101/2005, a inexistência de leis tributárias específicas para o devedor em recuperação judicial aderir ao parcelamento motivou a dispensa da sua exigência para a concessão da recuperação judicial no país (v.g.STJ REsp 1.187.404 MT), tendo a jurisprudência pátria atenuado o rigor da lei com a finalidade de assegurar sua aplicação em consonância com o disposto em seu art. 47, diante da antinomia legal identificada.

Mesmo após o surgimento da Lei n° 13.043/2014, que buscou a criação de uma legislação específica para o parcelamento de tributos aos devedores em recuperação judicial para atender o disposto no art. 68 da Lei n° 11.101/2005, o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo continuaram a dispensar o cumprimento da exigência prevista no art. 57 para a homologação do plano e respectiva concessão da recuperação judicial (v.g.STJ REsp n° 1.864.625/SP; STJ AgInt no REsp 1.619.054/RS; TJSP AgI n° 2144665-51.2018.8.26.0000; TJSP AgI n° 2196316-93.2016.8.26.000). Além disso, considerando que o art. 57 não prevê qualquer consequência para a ausência da apresentação das certidões previstas, a exigência legal poderia ser afastada sem maiores desdobramentos.

A reforma trazida pela Lei n° 14.112/2020 não alterou o art. 57 da Lei n° 11.101/2005, mas, promoveu alterações na Lei n° 10.522/2002 (Lei Geral do Parcelamento) e na Lei n° 13.988/2020 (Lei do Contribuinte Legal), destacando-se a previsão da transação tributária específica para devedores em recuperação judicial para a cobrança de créditos da Fazenda Pública Federal. Além disso, a Lei n° 14.112/2020 acrescentou o inciso V no art. 73 da Lei n° 11.101/2005 para prever como nova hipótese de convolação da recuperação judicial em falência o descumprimento pelo devedor dos parcelamentos previstos no art. 68 da referida lei ou da transação prevista no art. 10-C da Lei n° 10.522/2002, bem como o inciso VI para a mesma finalidade em caso de esvaziamento patrimonial em prejuízo às Fazendas Pública.

Os reflexos da Lei n° 14.112/2020 na legislação tributária repercutiram na aplicação do art. 57 da Lei n° 11.101/2005, identificando-se no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a partir da vigência da Lei n° 14.112/2020, a exigência da apresentação das certidões negativas de débitos tributários para a concessão da recuperação judicial em razão da existência de instrumentos criados especificamente para permitir aos devedores em recuperação judicial o saneamento tributário em condições mais ampliadas e viáveis (v.g.TJSP AgI n° 2248841-13.2020.8.26.0000; TJSP AgI n° 2194653-36.2021.8.26.0000; TJSP. AgI n° 2229302-27.2021.8.26.0000; TJSP AgI n° 2210390-79.2021.8.26.0000).

Considerando as novas alternativas existentes para o saneamento tributário, o novo entendimento adotado pelo E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo também se verifica nos Tribunais de outros estados, passando a Lei n° 14.112/2020 a constituir um marco para a exigência do cumprimento do art. 57 da Lei n° 11.101/2005 no país, destacando-se, nesse sentido, os Enunciados XIX e XX do Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

“Enunciado XIX: Após a vigência da Lei n. 14.112/2005, constitui requisito para a homologação do plano de recuperação judicial, ou de eventual aditivo, a prévia apresentação das certidões negativas de débitos tributários, facultada a concessão de prazo para cumprimento da exigência.”

“Enunciado XX: A exigência de apresentação das certidões negativas de débitos tributários é passível de exame de ofício, independentemente da parte recorrente.”

No Superior Tribunal de Justiça consolidou-se o entendimento que a ausência de lei específica para o parcelamento de débitos dos devedores em recuperação judicial dispensava a apresentação das certidões negativas de débitos tributários. Não obstante, no final do ano de 2023, destaca-se no Superior Tribunal de Justiça a adoção de entendimento favorável à exigência das certidões negativas de débitos tributários para a concessão de recuperação judicial após a vigência da Lei n° 14.112/2020, em razão das novas alternativas existentes para o saneamento tributário.

Portanto, a flexibilização na exigência do cumprimento do art. 57 da Lei n° 11.101/2005 que prevalecia antes da reforma em 2020, foi afastada pelo Superior Tribunal de Justiça no final do ano de 2023, que passou a considerar como marco para o cumprimento do art. 57 a vigência da Lei n° 14.112/2020 em razão das novas alternativas criadas para o saneamento tributário pelos devedores em recuperação judicial, conforme Acórdão proferido pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 2.053.240/SP, julgado em 17 de outubro de 2023, de relatoria do eminente Ministro MARCO AURELIO BELLIZZE, do qual destaca-se o seguinte trecho:

“A exigência de regularidade fiscal, como condição à concessão da recuperação judicial, após a edição da Lei 14.112/2020, passou a atender detidamente aos princípios da função social e da preservação da empresa, segundo o novel sistema concebido pelo legislador no tratamento do crédito fiscal no processo de recuperação judicial. Reconhecida, nesses termos, a plena aplicabilidade do art. 57 da LRF, que exige, como condição à concessão da recuperação judicial, a demonstração da regularidade fiscal, alguns pontos a respeito da questão posta merecem esclarecimentos.

De acordo com os fundamentos acima delineados, o direito ao parcelamento consubstancia um direito subjetivo do devedor em recuperação judicial (o qual não pode ser recusado no caso de cumprimento das condições impostas, ressalta-se), que somente pôde ser implementado, no âmbito federal, em razão da edição de lei específica a esse propósito (a Lei n. 14.112/2020, que introduziu os arts. 10-A, 10-B e 10 C na Lei 10.522/2002).

Por conseguinte, em relação a débitos fiscais de titularidade da Fazenda Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a exigência de regularidade fiscal, como condição à concessão da recuperação judicial, somente poderá ser implementada a partir da edição de lei específica dos referidos entes políticos (ainda que restrita em aderir aos termos da lei federal).

Relevante anotar, ainda, não se afigurar possível ao Juízo da recuperação, diante da não comprovação da regularidade fiscal estabelecer consequências diversas daquela fixada em lei. Conforme assinalado, nos termos dos arts. 57 e 58 da LRF, a não apresentação de certidões negativas (ou positivas, com efeito de negativas), enseja a não concessão da recuperação judicial.”

Referido julgado repercutiu de forma contundente no âmbito das recuperações judiciais e o entendimento inaugurado pelos Tribunais Estaduais quanto ao cumprimento do art. 57, a partir da vigência da Lei n° 14.112/2020, passou a prevalecer como requisito necessário à concessão da recuperação judicial no país.

2. Os desdobramentos da exigência do art. 57 da Lei n° 11.101/2005

Após ter o cumprimento flexibilizado durante a maior parte da vigência da Lei n° 11.101/2005, o novo entendimento referente ao art. 57, a partir da reforma de 2020, introduziu um novo e importante elemento na recuperação judicial: a regularidade tributária.

Os notórios obstáculos para o devedor em recuperação judicial atender ao disposto no art. 57, sem adentrar no mérito dos instrumentos especificamente criados para o referido fim, podem inviabilizar o êxito de muitas recuperações judiciais em razão, principalmente, das dificuldades decorrentes dos ajustes do fluxo de caixa ao prazo previsto para o saneamento fiscal.

Nesse sentido, identifica-se na jurisprudência a exigência do cumprimento do art. 57 associada à concessão de um prazo maior para a apresentação das certidões. É possível identificar na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo a concessão do prazo para a regularização fiscal antes do deferimento da recuperação judicial (v.g.TJSP. AgI n° 2036007-54.2023.8.26.0000) e, até mesmo casos, onde se verifica a homologação do plano e a respectiva concessão de prazo para o cumprimento do art. 57 após o deferimento da recuperação judicial (v.g.TJSP. AgI n° 2229302-27.2021.8.26.0000).

Os prazos concedidos para o devedor cumprir o art. 57 não são uniformes, variando entre 60 a 180 dias, com clara tendência de aumento do tempo para a regularização fiscal desde o início da adoção do novo entendimento a partir da reforma (v.g.TJSP. AgI n° 2224317-78.2022.8.26.0000; TJSP. AgI n° 2039112-05.2024.8.26.0000; TJSP. AgI n° 2137544-59.2024.8.26.0000).

A concessão de prazo para o cumprimento do art. 57, conforme visto, é objeto do Enunciado XIX do Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e tem-se tornado frequente nas decisões proferidas nas recuperações judiciais distribuídas após a reforma de 2020.

O julgado proferido pela 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no AgI n° 2137544-59.2024.8.26.0000, demonstra o atual entendimento adotado quanto à exigência do art. 57, in verbis:

“Agravo de instrumento – Recuperação judicial – Decisão recorrida que homologou o plano de recuperação judicial e concedeu a recuperação judicial de Eldtec Brasil Ltda. e outras, determinando que (i) a “recuperanda comprove ou, no mínimo, que demonstre os esforços nesse sentido, com a juntada de sua adesão aos programas de parcelamento”, no prazo de 90 dias e que “a supervisão judicial de cumprimento do plano deva durar pelo prazo de 15 meses” – Inconformismo das recuperandas – Impossibilidade de fixar-se o prazo de supervisão judicial em período inferior ao prazo previsto no plano de recuperação judicial em conformidade com o teto legal de dois anos (Lei nº 11.101/2005, art. 61) – Exigência de regularização fiscal contida nos artigos 57 da Lei nº 11.101/2005 e 191-A do Código Tributário Nacional – Aplicabilidade, ante os avanços no tratamento legal dispensado à regularização fiscal de sociedades em recuperação judicial, nos termos das Leis nºs 14.112/2020 e 13.988/2020 – Decisão homologatória mantida, porém, com a determinação para que as recuperandas comprovem, na origem, a quitação ou o parcelamento de todo o seu passivo tributário, ou eventual impossibilidade decorrente de injustificada ou abusiva relutância do fisco, com ampliação do prazo para 180 dias contados da publicação deste julgado, sob pena de “sobrestar o processo recuperacional até a efetivação da medida, sem prejuízo da retomada das execuções individuais e de eventuais pedidos de falência”, nos termos do recente precedente da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (REsp 2.053.240/SP - julgado em 17.10.2023) – Recurso parcialmente provido, com determinação.” (TJSP. AgI n° 2137544-59.2024.8.26.0000. 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. Rel. Des. MAURICIO PESSOA. DJ 24/09/2024)

Do V. Acórdão proferido no referido AgI n° 2137544-59.2024.8.26.0000, de Relatoria do I. Desembargador MAURICIO PESSOA, destaca-se o seguinte trecho referente à concessão da recuperação judicial e o prazo indicado para a regularização fiscal:

“Nesse contexto, tem-se, de um lado, que não há mais como afastar-se integralmente a exigência de regularização fiscal das sociedades em recuperação judicial, na esteira da antiga jurisprudência sobre o tema. De outro, contudo, não parece razoável obstar-se ou revogar-se, no atual estágio, a homologação do plano de recuperação judicial e a produção dos seus efeitos.

Assim, para que não se ignore o atual cenário legal nem haja prejuízo ao trabalho desenvolvido por todas as partes interessadas desde o ajuizamento da recuperação judicial, dá-se parcial provimento ao recurso tão somente para ampliar-se para 180 dias contados da decisão recorrida o prazo para que as agravantes comprovem, na origem, a quitação ou parcelamento do seu passivo fiscal (na esfera federal e na esfera estadual, nesta circunscrita aos débitos oriundos de ICMS inscritos em dívida ativa), ou eventual impossibilidade decorrente de injustificada ou abusiva relutância do fisco, sob pena de “ sobrestar o processo recuperacional até a efetivação da medida, sem prejuízo da retomada das execuções individuais e de eventuais pedidos de falência” , nos termos do citado precedente do C. Superior Tribunal de Justiça.

Reforma-se parcialmente a r. decisão recorrida para fixar-se o prazo de fiscalização judicial em 2 (dois) anos, a contar da data da homologação do plano de recuperação judicial e para determinar-se que as recuperandas comprovem, na origem, a quitação ou o parcelamento de todo o seu passivo tributário, ou eventual impossibilidade decorrente de injustificada ou abusiva relutância do fisco, no prazo 180 dias contados da decisão recorrida, sob pena de “sobrestar o processo recuperacional até a efetivação da medida, sem prejuízo da retomada das execuções individuais e de eventuais pedidos de falência”, o que deverá ser verificado e observado pelo D. Juízo de origem.”

(destaques constam no original)

Em consonância com o fundamento que deu vida ao art. 57 da Lei n° 11.101/2005, os Tribunais exigem a apresentação das certidões somente no âmbito federal em razão da ampliação dos meios criados para a regularidade tributária pela Lei n° 14.112/202, sendo que o cumprimento do art. 57 perante as Fazendas Estaduais, Municipais e Distrito Federal, dependerá da existência de instrumentos legais específicos de parcelamento para os devedores em recuperação judicial.

A concessão de prazo razoável para o devedor cumprir o art. 57, bem como a exigência de leis específicas para permitir ao devedor em recuperação judicial o saneamento fiscal perante as Fazendas Estaduais, Municipais e Distrito Federal, parece ser um caminho adequado criado pela jurisprudência para atenuar o problema do desencaixe do fluxo de caixa do devedor aos prazos previstos para a regularização tributária, que deve ser analisado de forma criteriosa pelo devedor em razão da nova hipótese de convolação da recuperação judicial em falência introduzida em 2020 no art. 73, V, da Lei n° 11.101/2005.

3. Efeitos do descumprimento do art. 57: suspensão, revogação ou falência?

O art. 57 da Lei n° 11.101/2005 dispõe que após a aprovação do plano cabe ao devedor apresentar as certidões negativas de débitos tributários, ao passo que o art. 58 da referida lei prevê que cumpridas as exigências legais, o juiz concederá a recuperação judicial ao devedor que teve o plano aprovado.

Nos termos legais, o atendimento ao disposto no art. 57 constitui requisito para a concessão da recuperação judicial, mas, não se verifica na Lei n° 11.101/2005 qualquer sanção específica para o descumprimento do art. 57. Portanto, não havendo a apresentação das certidões previstas no prazo legal não haverá a concessão da recuperação judicial, extinguindo-se, assim, o processo.

Não se vislumbra nesse caso, diante da ausência de previsão legal específica, a possibilidade da convolação da recuperação judicial em falência, já que não se encontra elencada nos arts. 73, 94 ou em qualquer outro dispositivo da Lei n° 11.101/2005 referida hipótese como causa de falência. Considerando que o sistema legal brasileiro adota o regime da insolvência jurídica, diante da ausência de dispositivo legal expresso, o descumprimento do art. 57 não pode resultar na convolação da recuperação judicial em falência.

Embora exigido como condição previa à concessão da recuperação judicial, a construção jurisprudencial, conforme visto, criou a possibilidade do cumprimento do art. 57 verificar-se após a concessão da recuperação judicial, no prazo deferido pelo julgador. Nessa hipótese, questiona-se qual seria a consequência da ausência da apresentação das certidões exigidas diante da novação prevista no art. 59 da Lei n° 11.101/2005.

Com base em julgados conhecidos sobre o tema, é possível destacar três desdobramentos distintos: i)convolação da recuperação judicial em falência; ii)suspensão do processo, com a retomada das ações contra o devedor; iii)revogação da decisão de concessão da recuperação judicial e respectiva extinção do processo.

Conforme visto, diante da ausência de previsão legal específica e da adoção do regime da insolvência jurídica pelo sistema legal, a possibilidade da convolação da recuperação judicial em falência não encontra respaldo no ordenamento jurídico, de forma que o descumprimento do art. 57 não pode resultar na convolação da recuperação judicial em falência.

Não obstante, é possível a identificação de entendimento pela convolação da recuperação judicial em falência no caso de desatendimento ao disposto no art. 57 no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (v.g.TJSP AgI n° 2180736-47.2021.8.26.0000), prevalecendo, contudo, o entendimento pela impossibilidade da falência nessa hipótese em razão da ausência de previsão legal específica (v.g.AgI n° 2137544-59.2024.8.26.0000; AgI n° 2039112-05.2024.8.26.0000).

Não atendido o disposto no art. 57 após o prazo concedido, destaca-se no âmbito do Superior Tribunal de Justiça o sobrestamento do processo recuperacional até a efetivação da medida, sem prejuízo da retomada das execuções individuais e de eventuais pedidos de falência, destacando-se que a Corte superior também afasta a possibilidade da convolação da recuperação judicial em falência pelo descumprimento do art. 57 (REsp n° 2.053.240/SP; REsp n° 2.082.781/SP).

Por outro lado, o sobrestamento do feito recuperacional, com a retomada das ações contra o devedor, conduz o processo de recuperação judicial a uma “zona cinzenta”, propiciando uma série de incertezas e conflitos, com a possibilidade da perpetuação processual em razão da ausência da apresentação das certidões pelo devedor.

Nesse contexto, existe um terceiro desdobramento possível para a ausência da apresentação das certidões, que se destaca pela busca da equalização dos interesses envolvidos, conforme decisão proferida pelo D. Magistrado do Foro Especializado das 2ª, 5ª e 8ª RAJS - Vara Regional Competência Empresarial, Dr. PAULO ROBERTO ZAIDAN MALUF, in verbis:

“Deste modo, a exigência da regularidade fiscal como condição à concessão da recuperação garante o equilíbrio pretendido pelo legislador entre os relevantes fins do processo recuperacional função social e princípio da preservação da empresa e restabelecimento da saúde econômico-financeira da sociedade empresária em recuperação judicial, atendendo aos parâmetros da razoabilidade e proporcionalidade ao conceder o benefício legal somente às empresas que demonstrem capacidade de cumprimentos das obrigações tributárias inerentes à atividade.

Importante salientar que a transação tributária deve ocorrer no tempo da recuperação judicial e não no tempo da Fazenda , com suas burocracias e notório excesso de serviço - o que, na maior parte dos casos, impede a formatação e apresentação de transação tributária ao tempo da aprovação do plano de recuperação judicial pela assembleia geral de credores.

Portanto, a solução mais adequada aos interesses econômicos e sociais deste processo é conceder prazo razoável às Recuperandas para que procedam à transação fiscal junto aos Fiscos Federal, Estadual e Municipal (desde que possuam leis que permitam a transação tributária de modo factível), sem comprometer o plano discutido e aprovado, com o início imediato de pagamento dos créditos concursais - sobretudo os de natureza trabalhista na forma do plano aprovado pelos credores.

Realmente, a simples (i) suspensão do processo de recuperação judicial e do período de blindagem (stay period), até a apresentação das respectivas CNDs, permitirá o prosseguimento das ações e execuções individuais, afastando-se por completo do princípio da par conditio creditorum. Também poderá inviabilizar o oportuno cumprimento do plano de recuperação judicial, anteriormente aprovado.

A (ii) extinção imediata do processo em razão da ausência de CNDs a possibilitar a concessão da recuperação judicial constitui um enorme desperdício de recursos dos interessados (empresa em recuperação judicial e credores) e do Poder Judiciário.

A (iii) convolação em falência não possui previsão expressa nos artigos 57 e 73 da LRF (nesse sentido, AI nº 2039112-05.2024.8.26.0000 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial Rel Des Maurício Pessoa 02/05/2024).

Frise-se: ao se conceder prazo razoável para apresentação de CNDs, a empresa continuará em atividade. O plano de recuperação judicial foi devidamente aprovado pelos credores, que reconheceram a viabilidade econômica da empresa e escolheram a melhor solução para o recebimento de seus créditos, preservando o valor agregado dos ativos.

Ademais, com a aprovação do plano, a oportuna homologação pelo Juízo da Recuperação e a concessão da recuperação judicial, os créditos deverão ser pagos imediatamente, nos exatos termos e condições aprovados, beneficiando diretamente os empregados, assim como os contratantes e impactando positivamente toda a estrutura empresarial, repercutindo na formação de novos contratos, atraindo investimentos e atingindo, em última análise, a função social da empresa, com preservação da atividade empresarial, manutenção/geração de emprego e renda.

Portanto, a fim de possibilitar o prosseguimento deste processo de recuperação judicial, defiro o prazo de 01 ano contado da publicação desta decisão no DJE para a juntada de certidões negativas de débitos fiscais (ou certidões positivas com efeitos negativos).

Importante repetir e frisar que este prazo permitirá que os débitos trabalhistas possam começar a ser adimplidos nos termos propostos pelo plano.

A homologação do plano de recuperação judicial terá como condição resolutiva a apresentação das CNDs. A condição resolutiva terá como efeito extinguir os efeitos da decisão homologatória, afastando a concessão da recuperação e afastando as obrigações contidas no plano anteriormente aprovado.

Deste modo, ficam as Recuperandas intimadas para apresentar certidões de regularidade fiscal (certidão negativa de débitos fiscais ou certidão positiva com efeitos negativos), no prazo de 01 ano - contado da publicação desta decisão no DJE -,ou demonstrar, de forma inequívoca, eventual impossibilidade decorrente de injustificada ou abusiva relutância do Fisco, sob pena de revogação da homologação do plano de recuperação e revogação da concessão da Recuperação Judicial - repita-se, afastando a concessão da recuperação judicial e afastando as obrigações contidas no plano anteriormente aprovado, com o consequente prosseguimento das ações e execuções (créditos concursais) pelo valor originário das obrigações.” (grifos constam no original)

(Proc. n° 1009827-02.2024.8.26.0576)

Dentre os desdobramentos apresentados, referido entendimento destaca-se por buscar a harmonização dos interesses abrangidos pela recuperação judicial, na medida em que prestigia o resultado da votação do plano pelos credores, dando início à contagem dos prazos de pagamento previstos no plano em benefício dos credores – especialmente os trabalhistas, além de fornecer fôlego novo ao devedor para o desenvolvimento da atividade econômica ao mesmo tempo em que permite um tempo mais adequado para o devedor tentar ajustar o seu fluxo de caixa aos valores das obrigações tributárias.

4. Conclusão

A partir da vigência da Lei n° 14.112/2020, o art. 57 da Lei n° 11.101/2005 passou a ter o cumprimento exigido pelos Tribunais, de forma que a criação dos novos instrumentos para a regularização tributária afastou a possibilidade da concessão da recuperação judicial sem a apresentação das certidões tributárias Federal e das demais Fazendas Públicas, desde que dotadas de leis específicas para permitir o adequado saneamento fiscal para os devedores em recuperação judicial.

Apesar de presente na lei desde a sua vigência, somente a partir da reforma de 2020 o art. 57 passou a ser realmente exigido pelos Tribunais, com importantes desdobramentos na jurisprudência que podem gerar insegurança jurídica aos devedores diante do risco de falência decorrente da ausência da apresentação das certidões.

A complexidade do tema e a inevitável exigência do cumprimento do art. 57 a partir da reforma de 2020, exigiram a criação de soluções destinadas a equilibrar os interesses em jogo. Nessa nova realidade, prazos são concedidos e ampliados para a regularização tributária, por vezes exigida antes da concessão da recuperação judicial e muitas vezes depois, com diferentes consequências processuais em caso da ausência da apresentação das certidões pelo devedor.

Dentre as consequências possíveis, conclui-se que a convolação da recuperação judicial em falência relacionada a crédito tributário deve ocorrer somente nas hipóteses legais previstas no art. 73, V, da Lei n° 11.101/2005 – descumprimento de parcelamento ou transação e no caso do inciso VI do referido dispositivo legal, visto que havendo o esvaziamento patrimonial da devedora que implique na liquidação substancial da empresa em prejuízo das Fazendas Públicas e dos credores não sujeitos à recuperação judicial, o Juiz poderá decretar a falência durante o processo de recuperação judicial.

A solução constante no leading casedo Superior Tribunal de Justiça (REsp n° 2.053.240/SP), determinando o sobrestamento do feito recuperacional, com a retomada das ações contra o devedor, cria inevitavelmente um “vácuo” no processo de recuperação judicial com grande potencial para o surgimento de inúmeros problemas relacionados aos efeitos da novação, restrições legais e obrigações do devedor em recuperação judicial, atuação do Administrador Judicial, ofensa ao princípio do par conditio creditorum, cumprimento do Plano e convolação da recuperação judicial em falência que certamente proporcionarão amplas discussões judiciais.

Nesse contexto, parece que diante da ausência da apresentação das certidões no prazo determinado, a terceira solução apresentada mostra-se mais equilibrada. Ao mesmo tempo que a concessão da recuperação judicial permite o início da contagem dos prazos previstos no plano em benefício dos credores, o prazo de um ano para a regularização tributária prestigia o pagamento dos credores trabalhistas e permite ao devedor equalizar de forma mais adequada o seu fluxo de caixa ao cumprimento das obrigações tributárias anteriores à recuperação judicial.

Não havendo o saneamento tributário no prazo concedido, diante da homologação do plano sob a condição resolutiva quanto à apresentação das certidões, os efeitos da decisão homologatória e respectiva concessão da recuperação judicial serão extintos, retornando as obrigações às condições originalmente contratadas, descontados os pagamentos eventualmente realizados durante o processo, com o consequente prosseguimento das ações e execuções referentes aos créditos concursais que se encontravam suspensas. Adotado referido entendimento, o processo de recuperação judicial se extingue, encerrando-se todas as questões que poderiam surgir em um processo recuperacional suspenso por tempo indeterminado e com vários pontos suscetíveis a discussões judiciais.

Bibliografia

BRASIL. Lei n° 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 9 de fevereiro de 2005. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm > Acesso em: 01 dezembro 2024.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Inicio> Acesso em: 01 dezembro 2024.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Disponível em <https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/consultaCompleta.do?f=1> Acesso em: 01 dezembro 2024.

Artigo escrito por Marcelo Gazzi Taddei, que é advogado, parecerista e administrador judicial em processos de Recuperação Judicial e Falência no Estado de São Paulo. Professor de Direito Empresarial na UNIP – São José do Rio Preto, SP, desde 2001. Graduado e mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, de Franca/SP. Professor convidado em cursos de pós-graduação.

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